Márcia Short: quando a grandeza é ofuscada pelo racismo



Divulgação / Márcia Short integra uma tradição
de vozes negras

De fato, existem várias teorias da comunicação, além dos movimentadores cotidianos que fazem isso que chamamos mídia, que analisam e ratificam o estar ou não de vozes no cenário do show business, atuando como artistas e, ao mesmo tempo, como produtos vendáveis comercialmente. Muito se fala que a Bahia é um celeiro produtor e exportador de talentos musicais, desde ícones eternos como Dorival Caymmi e João Gilberto, até fenômenos de massa como Ivete Sangalo, a Bahia pautou e ainda pauta produtos comercializáveis em todo o Brasil.

Assim como existem critérios de noticiabilidade para a prática jornalística, que nem sempre estão coadunados com os princípios desta profissão, existem também, às vezes de modo ainda mais perverso e dissonante com o estar co-existencial dos indivíduos, os critérios que agendam vozes, rostos, corpos, os possíveis "talentos" que nos são vendidos cotidianamente.

Para além da necessidade de uma constante novidade no mercado, da exigida descartabilidade, do facilmente digerível e do que "acontece" como fenômeno e espontaneidade, existem substratos históricos e sociais que conduzem o mercado a oprimir e alijar membros, por vezes talentosíssimos, por não representarem o padrão hegemônico e não possuírem poder de barganha com as forças que instituem as leis e criam as brechas que trazem à luz algumas exceções desta terrível regra brasileira.
Este artigo fala fundamentalmente da experiência baiana. A Bahia da "Axé Music", que sistematiza uma poderosa indústria cultural local que ressoa por todo o continente brasileiro. A Axé Music de suma importância para grandes feitos que os baianos, bebedores do que se conhece como culturas luso-africanas, geraram e produziram carnavalescamente em nosso estado. Axé Music que vem dos negros, que exalta os negros, mas grande parte da lucratividade repousa, quase num sentido de eternidade, nas mãos dos brancos classe média que deram continuidade à máquina do trio elétrico.
Por mais que não queiram ver, o que se tornou um dos melhores carnavais do Brasil, dito por muitos como o melhor, é um carnaval sustentado pela exclusão. E o ponto máximo desta exclusão é deixar de fora os negros que deram alma a quase todos os projetos que configuram o carnaval de Salvador, desde os entrudos até as feições deste carnaval na atualidade.
Paira no ar a pergunta sobre a perenidade de alguns artistas entre nós. O Chiclete com Banana, por exemplo, sem qualidade musical, é um fenômeno de décadas. Ivete Sangalo, dona de um carisma poderoso e ótima cantora, vai pelo mesmo caminho da eternização. Daniela Mercury é a mais completa artista na música carnavalesca da Bahia, a que se renova com talento, passeia com categoria por outros estilos mas também se beneficia com o fato de ser uma mulher branca. Claudia Leitte é a síntese da força do discurso racial na produção de estrelas: loira, bonita no padrão, jovem, mas bem longe de ser cantora. Temos outros nomes que oscilam entre as reflexões apresentadas, que vingam por conta do esquemão empresarial de seus blocos lhes dando segurança e continuidade.
Ora por dentro, ora por fora, temos uma das divas mais importantes desta história: Margareth Menezes que, muitas vezes, foi excluída da "beleza" da folia baiana, sem ter o espaço merecido, acusada de desafinar, de não cuidar bem da carreira e, claro!, de não corresponder a estética de "feminilidade" que a política do trio exige. Hoje, ela compõe bem o personagem, ainda com dificuldades, se marca como uma das três vozes do carnaval baiano se sustentando comercialmente.
E Márcia Short? A menina da extinta Banda Mel tem que ser extinta também? Será que não se ouve a especialidade do seu timbre, a limpidez do seu canto, sua experiência como cantora de verdade que poderia estar no time das melhores cantoras disto que chamam de "MPB"? Será que não se alcança a beleza marcante daquela mulher mãe de dois filhos? Não cabem no carnaval da Bahia as legítimas filhas das nossas culturas negras?
O que é uma cantora? A nova gestão cultural do Pelourinho, a cargo do Centro de Culturas Populares e Identitárias da Bahia, deu a chance de Márcia Short fazer uma prévia do que ela é capaz, num palco ou num trio elétrico, e a mesma, nos dias de quinta-feira, reúne uma platéia grande e qualificada, para cantar um repertório reluzente que conta a história da Axé Music. Ressaltando: reúne para cantar. Ela tem domínio de voz, conteúdo estético que faz a gente sentir sons e palavras e dançar ao mesmo tempo. Não é o tal do "pula aí", "levanta as mãozinhas", e tome a sacudir os cabelos e a dar com as mãos em excessivos acenos para evitar os desafios do microfone.
Márcia Short tem 45 anos, uma carreira com quase 25, referendada por nomes como Lenine, Chico César, Elba Ramalho, Saul Barbosa, Caetano Veloso, Daniela Mercury. Ela traz uma tradição de vozes negras da Bahia que suingam e embelezam nossa produção local e nacional. É uma presença ausente que envergonham a nós que conhecemos o seu talento e os motivos locais do seu "afastamento". Talvez ela nem queira mais fazer "carnaval"; mas cantar é a alma desta mulher que vaga de projeto em projeto enquanto as animadoras ganham rios de dinheiro com o status de cantora.
Por trás dos impedimentos a Márcia Short, para além da fatalidade de que ela já teve seu tempo, existe o gosmento racismo brasileiro pautando nossos desígnios artísticos e festivos. Deveria existir na Bahia, dentro dos planos de Políticas Culturais, projetos que alimentassem não uma cena alternativa e sim, o que de fato há, uma cena co-existente com a Axé Music, que permitisse a gente ser mais que o "auê" do carnaval.
Quanto ao racismo, ele não acabará por decreto e nem ao meio de novas Políticas Culturais. Mas, precisamos dar ao talento o que é do talento e situar artistas, como Márcia Short, nos lugares que são seus e nós precisamos deles na ativa.


Marlon Marcos é jornalista, antropólogo e professor. Blog: Memórias do Mar.


Fonte: Terra Magazine

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