Galã da cidadania

Zulu Araújo
De Brasília (DF)



Lazaro Ramos e Camila Pitanga interpretam
um par romântico da novela das 8
Divulgação
Quando aceitei o convite de Bob Fernandes para ser colunista em Terra Magazine, a quem agradeço esta oportunidade, passei um bom tempo imaginando qual seria o primeiro tema que abordaria. Imaginei falar sobre minha perplexidade com o bloqueio criativo da música baiana, sobre minha gestão à frente da Fundação Cultural Palmares, que me proporcionou momentos mágicos no intercâmbio cultural da diáspora negra, em particular com o continente africano, até me fixar na capa de uma revista, onde se lia: "O primeiro galã negro", e via-se: a foto em página inteira do nosso querido Lázaro Ramos.

Chamou-me a atenção, pois há muitos anos não via uma capa de revista tendo como protagonista um artista negro. Apesar da abordagem quase cosmética das razões que dão causa a forte polêmica que se trava atualmente na internet e seus tentáculos - twitter, blogs, facebooks, etc. -, sobre se Lázaro Ramos, um negro, pode ou não ser um galã brasileiro, recheada de impropérios, xingamentos e manifestações explícitas de racismo, ainda assim, vale a pena saudar o feito.

Afinal, quem é esse talentoso artista? Qual o papel que ele hoje desempenha, no enfrentamento desta questão, em particular no campo das artes? Perguntas indispensáveis a serem respondidas se quisermos compreender a complexidade do tema racial no Brasil. Apesar de ter lido seguidas vezes a matéria, pouca coisa é possível extrair dela, neste sentido. Como diria o cineasta Joel Zito Araújo, "É a Negação do Brasil" que continua mascarando o enfrentamento de algo palpável em nosso País que é a discriminação racial. Aliás, a razão de ser da própria matéria é o estranhamento que uma parcela considerável dos telespectadores tem tido sobre o assunto. É a manifestação velada ou não, do quanto estamos impregnados de preconceitos, em particular no campo estético, da qual deriva a compreensão de que determinados símbolos da nossa sociedade só podem ser representados por brancos.

Por várias coincidências da vida, acompanho a carreira de Lázaro desde o inicio: sou baiano, fui diretor do Grupo Cultural Olodum, assisti a quase todas as peças do Bando de Teatro Olodum, grupo que ele integrou e onde se projetou. Compartilhamos amigos comuns, apesar da distância etária. Volta e meia nos encontramos em trabalhos, bate papos e entrevistas. Por tudo isto, me sinto à vontade para afirmar o que se segue: Lázaro Ramos é hoje o fruto mais bem acabado que a luta pela promoção da igualdade racial produziu no país nas últimas décadas. Firme sem ser autoritário, culto sem ser esnobe, ousado sem ser irresponsável, político, sem ser militante, além, evidentemente do enorme talento, faz de Lázaro hoje, um símbolo da cidadania que buscamos. Prova disto, é a forma madura, inteligente e criativa com que ele vem encarando o manifesto preconceito por conta da sua presença como protagonista de uma novela das oito.

Antes que pensem que ele é um enviado divino para nos salvar, explico: Lázaro é filho dileto e direto de uma concepção de luta contra o racismo brasileiro que está dando certo. Apesar de tanto não e de tanta dor que nos invade, estamos avançando. Esta estratégia que teve inicio na década de 1970, na Bahia, com os Blocos Afros, contém dois pressupostos básicos; a cultura como referência organizacional numa mão e a política de promoção da igualdade na outra. Embora isto não seja nenhuma novidade, só agora os resultados estão aparecendo e não apenas no meio artístico. Na área da literatura, no parlamento, na academia, é cada vez mais frequente o surgimento de talentos afro-brasileiros a serviço do desenvolvimento humano em nosso País.

Não fosse a existência de um grupo de atores negros, de uma organização negra, que tratava de temas negros, na luta pela igualdade, muito provavelmente Lázaro não teria se encantado com o teatro e se revelado ao País, com tanta beleza. A afirmação na matéria de que há uma mudança cultural forte no interior da nossa sociedade, no tocante à inclusão plena do negro em seu seio, precisa ser melhor qualificada. Afinal, este fenômeno não é decorrente da bondade e da gratidão da elite brasileira. Tampouco os números exuberantes que aparecem indicando um aumento expressivo da presença de negros no ensino superior (da ordem de mais de 300% nos últimos dez anos) são resultados da mobilidade espontânea em nossa sociedade. Pelo contrário, são frutos de uma luta árdua e permanente em busca da cidadania plena.

Este assunto lembra-me o verso do cantor baiano Lazzo em uma de suas canções: "Eu sou parte de você, mesmo que você me negue". Por mais que seja omitida as razões destas mudanças, é inegável que se não fosse a luta e a implementação de políticas públicas de combate ao racismo e promoção da igualdade, tanto pela sociedade quanto pelo estado, nos últimos anos, dificilmente teríamos estes números a exibir.

Voltando ao começo, ainda bem que temos um Lázaro para simbolizar esta discussão.

Toca a Zabumba que a terra é nossa"

Zulu Araújo é arquiteto, produtor cultural e militante do movimento negro brasileiro. Foi Diretor e Presidente da Fundação Cultural Palmares (2003/2011).

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